domingo, 2 de agosto de 2009

EDUCAÇÃO - UM GUIA PARA O CONHECIMENTO E O DESENVOLVIMENTO INTEGRAL DE NOSSO SER






NOTA INTRODUTÓRIA
EDUCAÇÃO é uma série progressiva de artigos, uma das poucas coisas que a Mãe formulou escrevendo. Neles expõe e clareia, numa linguagem simples, aspectos fundamentais da educação, em toda sua amplitude e profundidade, pondo cada um deles em correspondência imediata a dimensões e realidades constituintes do ser humano. Os artigos se originam de uma consciência escrupulosa, de um poder incomum de percepção e apreensão, sempre avançando até o cerne de cada problema e mostrando-o em sua essência, elucidando ao mesmo tempo detalhes, até sutis minúcias, e, no entanto, jamais perdendo a visão da unidade, do todo; e onde aponta deficiências, fraquezas, deformações, não se demora na franqueza detectora: logo dá o valor real, a figura original, a verdade da coisa em questão, ajudando a encontrar a resposta, a confiança que protege, a energia para ordem e construção, e tudo respira e irradia a certeza inabalável de que é para a Luz, a Plenitude, a União e a Verdade, que o homem, que nós, com o mais autêntico direito e dever, estamos caminhando.
A Mãe escreveu pouco. A maior parte de seu tempo era tomado pelo viver, pelo dar, pelo ser. Isto em todos os sentidos, abarcando e realizando em sua vida tremendamente complexa os
mais diferentes graus e níveis, estendendo-se do físico-instintivo até o espiritual-transcendental, incluindo e mesmo pondo em destaque o plano humano-intelectual. Durante muitas décadas – quase meio século - orientou e liderou a comunidade de Sri Aurobindo Ashram, assumindo todo tipo de problema: alimentação de bebês, exercícios físicos para idosos, encenação de peças de teatro, ensino de eletrônica, simbologia das cores, construção de casas, compra de máquinas, cultivo de verduras, planejamento urbanístico, a doutrina budista, perguntas sobre a origem da alma, o sentido da morte, a evolução do mundo, higiene do corpo, cozinha sadia, poesia, jardinagem, dança, tecelagem, fabricação de móveis e perfumes, técnicas para absorção da energia universal, contos para crianças, etc., etc.
Pode-se dizer que provavelmente não houve assunto da vida humana que não tivesse chegado até a Mãe, solicitando participação, ajuda, orientação, realização. E ela, com base em uma grande humanidade e humildade, e sustentada em seu viver a guiada por sua exclusiva entrega e incondicional obediência a poderes de consciência e amor supra-humanos, supramentais, divinos; respondeu a tudo, e uniu e fez crescer tudo. É esta força, esta consciência, este amor, este poder de união que nestes artigos se expressam e se colocam com grande simplicidade diante de nós. E a nós, diante disso, cabe uma só atitude: receber e agradecer.

REFLEXÃO PRELIMINAR
Há poucos meses conversei com estudantes de dança sobre a seguinte anotação de Franz Kafka: Pode-se perfeitamente admitir que a maravilha da vida, em toda sua abundância, esteja à disposição de cada um e sempre, porém oculta, na profundidade, invisível, bem longe. Mas ela existe lá, sem inimizade, sem estar surda, sem resistência. Chamando-a pelo nome certo, ela então virá.2 Perguntei a cada um o que para ele significava: a maravilha da vida. E logo a primeira resposta, de uma menina, foi: A maravilha da vida é poder ter um objetivo - não qualquer um, não qualquer coisinha, mas algo realmente válido, algo maior - e poder lutar por esse objetivo, lutar para alcançá-lo. E uma outra estudante disse: É a própria vida, quer dizer, a maravilha da vida é poder viver, ter esta existência; e perguntada se podia dizer algo mais, ela, colocando as mãos no peito, acrescentou: é eu sentir a chama acesa em mim, em minha vida, a chama que me faz ver o bom, que me faz confiar, ir adiante.
Logo a primeira resposta é como um intuitivo eco precedendo as palavras da Mãe que abrem este livro: Uma vida sem objetivo é uma vida sem alegria. Tenham todos um objetivo. Mas não se esqueçam que da qualidade de seu objetivo vai depender a qualidade de sua vida... Estas palavras são para nós de real valor - afirmam-nos em nossa direção. Sempre sentimos que o que devemos ao ser em desenvolvimento não é apenas dar liberdade e, em acréscimo (ou em proporção igual ou até maior, como é ainda muito o caso), fornecer um panorama e uma explicação de mundo convencionados, e possibilitar ao indivíduo ainda, eventualmente – como uma ajuda para a formação da personalidade – oportunidades e meios para externamente experimentar e pesquisar, e desta maneira conhecer, denominar um certo número de componentes de seu ser e identificar-se com eles. Achamos que educação seja mais. Achamos que a tarefa colocada para o educando pela atual educação – a tarefa de dever realizar, ao lado do livre crescimento subjetivo, uma formação-de-si e um conhecimento do mundo no nível da consciência coletiva comum - seja em si contraditório e, antes de tudo, insuficiente, por não atingir o ser em sua particularidade nem tampouco em sua totalidade; é necessário que ele busque e defina como um eixo para seu existir e evoluir, um sentido, um objetivo que não seja uma submissão a ideais-padrão universais, nem uma simples adaptação às perspectivas de vida estabelecidas e propagadas pela presente sociedade, e nem um fruto de solitárias e soltas imaginações, mas um objetivo fundado no que há de mais claro, mais genuíno, mais real na pessoa. E feito isto, o crescer não termina aqui, ele se estende para adiante: o indivíduo - ultrapassando o procurar e definir – deve começar a viver o objetivo escolhido. Para isto é indispensével que haja um conhecimento de si o suficiente fundo, corajoso e abrangedor para poder exceder a concentração na realidade subjetiva individual levando à compreensão e visão de que a existência do homem não tem fim em sua própria pessoa e esfera particular:
rompendo – perceptível ou imperceptivelmente - a todo momento esta esfera e seu ambiente imediato, ela se eterna e se irradia para dentro de âmbitos cada vez mais extensos, alcançando e influenciando dimensões e planos que a consciência externa não registra. Por outro lado é essencial que despertemos para o conhecimento de que o núcleo e a raiz de nossos poderes estão em nós mesmos. Não em nossas capacidades físico-vitais ou mental-racionais (estas têm fundamentalmente função instrumental), mas dentro de nós, na região das vivências não-exteriores, em camadas ocultas e ainda ignoradas ou em parte mesmo rejeitadas por nós. E no entanto é desta interioridade que nos vem o saber do que é puro, do que é sincero, e o que deve ser feito. Sem que tenhamos consciência direta disso, abarcamos dentro de nós uma infinidade – e somos capazes de tornar esta grandeza uma intensidade de vida concreta, um movimento palpável existencial: uma real força, um fato, um crescimento emanando-se para dentro do mundo.
Educar, podemos dizer, significa ajudar a acordar, ajudar a encontrar no próprio ser o ímpeto, a saudade, a vontade de movimentar-se e buscar e descobrir, de crescer, de progredir. E educar significa também aprender a lutar, aprender a intensificar a existência e a cumpri-la com decisão e consciência. Educar, basicamente, é ajudar a assumir a vida; é levar o ser a procurar e a aspirar à verdade, a sentir e chamar a luz e a força encobertas nele mesmo; fazê-lo perceber a grande possibilidade que a vida é, o que com ela recebemos, e aprender, conscientemente, a querê-la, vivê-la, dá-la.

Há duas só regiões onde procurar, e assim se coloca no princípio do caminho de busca a necessidade de uma primeira escolha, uma alternativa: posso procurar fora de mim, ou, em mim. Será que fora de mim - nas coisas e pessoas e acontecimentos, no mundo que integro e que me cinge - eu acho o que ainda não sinto e sei como meu, ainda não percebo como real em mim? De fato, é fora de mim que há mil movimentos, valores, sugestões e informações, forças e elementos, complementares e contraditórios, e especialmente enquanto pequeno eu vivo do receber: estou numa dependência praticamente absoluta daquilo que compõe meu imediato redor - é de lá, é do fora que vem o que me alimenta vem o que me abraça, o que me penetra, me constrói e deforma, assusta e alegra e, através das múltiplas experiências, me faz crescer. Mas existe - mesmo nesta dependência tão inteira - algo dentro de mim que atua por si, algo profundamente meu, algo em meu interior que, de início, me caracteriza e cunha, que faz minhas reações e respostas e também minhas necessidades e exigências serem particulares, típicas, distintas, individuais. E, à medida que vou crescendo, aquilo que há de mau próprio em mim, aquilo que me destina a ser um eu introcável, uma pessoa singular e um instrumento executor de uma determinação e missão únicas apronta-se cada vez mais para se expressar e manifestar-se e conduzir minha vida; e ao mesmo tempo recebo um número cada vez maior de influências de fora, influências cada vez mau diversas e mais absorventes, correspondendo a minha crescente necessidade de expansão e de alimento percepção existenciais. O modo em que as coisas de fora se colocam é forte e quase inevitável, é antes uma invasão e imposição do que uma aproximação, e são raras as vezes em que se estabelece uma real concordância mútua ou uma vibração idêntica entre mim e aquilo que vem, e menos freqüentemente ainda existe a possibilidade de livre escolha; o que cresce dentro de mim, por sua vez, é tão novo, tão fresco, tão tenro e – em contrário às coisas de fora – ainda imensamente mutável e assim pouco palpável tão pouco direto que um dedicado e consciente movimento de proteção e busca torna-se urgente: silêncios para escutar e perceber, um renovado e sempre mais inteiro ir para dentro, um viver dentro: eu preciso saber o que, no cerne, me constitui o que me faz existir, o que sou verdadeiramente eu.
Quando ainda pequenos todos nós temos, bem naturalmente, essa necessidade de ir para dentro buscando (uns com mais força, outros com menos) e lá sempre encontramos maravilhas, tesouros, coisas que nos deliciam e às vezes também nos assustam, mas sempre fascinando-nos e enchendo-nos – tornamo-nos identificados, ficamos encantados, transformados, e trazemos nossas riquezas para a superfície. Porém a atualidade que nos cerca é diferente e raramente sabe responder adequadamente ao que oferecemos e perguntamos e queremos, e antes não ouve, ou corta ou até destrói, ou interpreta erroneamente, ou, simplesmente, diminui e banaliza, ou indiferentemente tolera, o que nos é imensamente caro e importante. Assim, em geral, perdemos o estimulo, desaprendemos a irmos para dentro e a sermos psiquicamente despertos e espontâneos – engrossamos e endurecemos, adaptando-nos ao poderoso mundo exterior. Mais tarde, na adolescência, há normalmente um outro impulso de busca e entusiasmo, levando o ser a uma renovada abertura às dimensões interiores, e então acordamos mais uma vez entregamo-nos ao que é belo, ao que emociona, àquilo em que sentimos alguma força e grandeza. E possivelmente isto nos faz abrir-nos à arte, ou nos dedicamos a uma religiosidade intensa, identificamo-nos com um idealismo político, humanitário ou outro, ou ainda com alguma coisa diferente, maior do que nós. Mas depois esses movimentos tendem a se perder, pois a sinceridade que encontramos é pouca, pequenos são a compreensão e o esclarecimento que recebemos – são bem poucos os que nos respondem, que afirmam aquilo que estamos sentindo e querendo colocar em nossa existência como um componente real. Finalmente, no lutar com o mundo exterior-adulto e com a inevitável adaptação a ele, temos que colocar em planos cada vez mais relegados nossa procura da força e da luz que poderiam indicar fontes autênticas da vida, lembrar seu sentido e âmago, sua maravilha. Então parece que o "livre crescer e progredir”, como se poderia denominar uma das projeções destacadas da educação de nossa época, não é compreendido tanto como um fundamento e potencial dinâmico para uma realidade vivencial plena e elevada, mas muito mais apenas como um novo princípio e método educacional experimental a ser aplicado.
Sri Aurobindo constatou há seis decênios o domínio e peso do anual mundo exterior sobre nós: carregamos certamente um peso terrível de exigência, regra e lei externas, e nossa necessidade de auto-expressão, do desenvolvimento de nossa pessoa verdadeira, nossa alma real, nossa lei-de-natureza característica mais íntima na vida, recebe interferências era cada um de seus movimentos, é impedida, é forçada para fora de seu curso, é-lhe dada uma chance e extensão bem pobres através de influências ambientes. Vida, Estado, sociedade, família, todos os poderes que nos rodeiam parecem estar aliados para colocarem seu jugo sobre nosso espírito, para compelir-nos para dentro de seus moldes e impor sobre nós seu interesse mecânico e sua rude conveniência imediata. Tornamo-nos partes de uma máquina; não nos é permitido, ou dificilmente nos é permitido sermos no sentido verdadeiro, manusya, purusa, almas, mentes, filhos livres do espírito, equipados com os poderes de desenvolver a perfeição característica mais alta de nosso ser e fazer dela nosso meio de serviço à espécie. Parece realmente que não somos o que nós mesmos fazemos de nós, mas o que é feito de nós.3 Mas Sri Aurobindo não se satisfaz com uma simples constatação. Deduz desta situação existencial nossa uma exigência e tarefa a ser colocada para a educação: A educação da criança deveria ser um despertar e levar à realização tudo o que é melhor, mais poderoso, mais intimo e vivo em sua natureza.4 E com clareza absoluta ele vê e diz que nosso crescimento é expressamente individual, e que a educação não termina com a infância ou a adolescência, mas se estende para além, abrangendo a vida toda: O molde dentro do qual a ação e o desenvolvimento do homem deveriam ser fundidos é aquele de sua qualidade e poder inatos. Ele tem que adquirir coisas novas, mas ele as adquirirá da melhor maneira, mais vitalmente, com base em seu próprio tipo desenvolvido e em sua força original. E assim também as funções de um homem deveriam ser determinadas por sua tendência, talento e capacidades naturais. O indivíduo que se desenvolve livremente desta maneira será uma alma e uma mente vivas e terá um poder muito maior para o serviço à espécie.5
manusya - um homem, um ser humano (da raiz do verbo sânscrito man - pensar)
purusa - Alma, a Pessoa espiritual; o Si ou Ser consciente que por sua presença e seu consentimento mantém as operações da Natureza.

Com uma idêntica profundeza e nitidez, a Mãe vê a necessidade de o homem simultaneamente desenvolver sua particularidade e servir ao todo – o que significa a existência simultânea, a fusão de movimento individual e movimento coletivo, de diversidade e unidade – e que viver esta simultaneidade em uma harmonia crescentemente total é a própria tarefa e realização da vida humana, e o objetivo de nosso esforço para a perfeição: ...todos são um, tudo é um em sua origem, mas cada coisa, cada elemento, cada ser tem como missão revelar uma parte desta unidade a ela mesma, e é esta particularidade que deve ser desenvolvida em cada um, despertando ao mesmo tempo o sentido da unidade original. É isto que significa trabalhar para a unidade na diversidade. E a perfeição nesta diversidade está em cada um ser perfeitamente o que ele deve ser.6
Formulou-se com isto uma direção que aponta o objetivo essencial e a conseqüente tarefa da educação, a realização simultâneo de dois movimentos interligados: de um lado, o ajudar o ser a encontrar sua lei de crescimento característica e missão central e caminho, e a crescer de conformidade com eles; junto com isso, o fazê-lo ver e com força sentir a unidade que tudo forma, e como cada um de nós, integrando esta unidade, é um de seus múltiplos elementos, minúsculo em relação à imensidade do todo e no entanto indispensável para seu existir: pois a grandeza e o sentido e o poder complexos da unidade se originam justamente de sua constituição única, unindo uma infinidade de elementos característica e individualmente distintos entre si, entes não-estandartizados e não-massificados.
Vemos que para cada indivíduo coloca-se como trabalho primordial o descobrir-se a si mesmo, o concentrar-se na incontestável realidade das vivências interiores, o querer o movimento para dentro e o intensificá-lo, e a prontidão de silenciosamente escutar e, no íntimo, receber e saber. Só através disto pode cada um chegar a um conhecer-se mais total, a um ter-se, e ao afirmar o existir de dimensões outras - só através disto poderemos ver a necessidade de nos abrir a um além e de buscar a participação em uma vida maior, uma existência não fechada em torno do eu pessoal, sentindo com uma nitidez cada vez mais aguda a futilidade do predominante estar voltado para o bem e os males da própria pessoa. Pois cada um deve achar seu próprio lugar, o lugar que só ele pode ocupar no concerto geral, e ele deve dar-se inteiramente a isto, não esquecendo que está tocando apenas uma nota na simonia terrestre, e, no entanto, sua nota é indispensável à harmonia do todo, e seu valor depende de sua justeza.7
É à visão disto que a educação deve levar o educando - é a necessidade de construir a nossa unidade que deve vibrar na consciência e na vontade do educador, impulsionando e determinando sua ação. É assim que a base para um renascer pode ser colocada, um renascer da vida humana para fora de suas barreiras enrijecidas e armadas, para dentro de um novo grau e um novo sentido, tornando-se o homem outra vez criança, vivo e inteiro, novamente – e nascerá com a felicidade de poder evoluir e ser e agir.
Salvador, janeiro de 1974
rolf gelewski

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